top of page
Buscar

Treze de dezembro

  • Foto do escritor: Flávio Stresser Araújo
    Flávio Stresser Araújo
  • 21 de dez. de 2021
  • 15 min de leitura

Atualizado: 31 de mar. de 2024

Esse conto foi o meu conto favorito que eu escrevi durante uma oficina de narrativa em prosa que cursei na Esc. Escola de Escrita em 2018. Ele se passa em uma Curitiba fictícia com personagens fictícios (embora um deles apresente vários elementos da minha personalidade e do meu jeito com um leve exagero), inspirado em um restaurante italiano que adoro frequentar no centro da cidade.

 

Ainda não tinha se acostumado com a lava-e-seca. A roupa que tinha lavado ontem estava agora pra secar e não tinha inferno que conseguisse abrir a porta da bendita máquina pra tirar a camisa polo preta lá de dentro. Já estava atrasado, tinha que ter saído 3 minutos atrás para chegar com 10 minutos de antecedência no início do seu expediente de 9 horas (8 horas de trabalho, 1 de almoço), o que não seria tanto problema, mas a santa Samsung só libertaria seus prisioneiros dentro de 6 minutos, diminuindo sua margem de antecedência de chegada ao trabalho para 1 mísero minuto, o que era muito arriscado levando em conta a possível variação de tempo de viagem em função do trânsito. Por quê, tecnologia? Por que não deixava abrir a porta antes do tempo para pegar a polo preta e sair logo para o trabalho? Podia ficar com as outras roupas, elas não importavam, só precisava da polo preta, é pedir demais?

Tinha outras camisas, sim, outras polo inclusive, mas hoje era um dia especial. Hoje era 13 de dezembro e tinha um encontro marcado há muito tempo. E para esse encontro, tinha que usar a polo preta porque era a favorita dela.


Fazia quantos anos já? Tinham se conhecido no aniversário da Gisele (aquele que deu a maior treta quando todo mundo viu a aniversariante se pegando com o irmão do Gabriel, que, por sua vez, sempre fora a fim dela e saiu chorando da festa quando viu a cena), fazia agora... 7 anos, 3 meses e 10 dias que se conheciam (7+3=10, veja só!). Teve de ficar consolando o amigo, esperando o táxi chegar, dizendo que, é verdade, irmãos podem ser uns babacas, mas talvez isso fosse bom pra ele superar de uma vez a Gisele porque, cara, já fazia 4 anos que ele era a fim dela, desde o Ensino Médio, e ela nunca quis nada, então só supera, né! Decidiu voltar pra balada, pro camarote reservado pela amiga, mas o camarote não mudava o fato de que aquilo parecia um formigueiro humano, onde era impossível dar 3 passos sem levar uma cotovelada e o calor humano fazia a temperatura subir no mínimo uns 12 graus comparado com o lado de fora. Um inferno. Sim, quando pensava sobre o inferno era exatamente assim que imaginava: quente, abafado, socado de gente e com música alta demais para sequer conseguir escutar alguém logo na sua frente.


4 minutos?! Anda logo, caramba! Ponderou por alguns instantes. E se pegasse uma outra camisa e saísse agora? Dava pra voltar pra casa antes de ir pro encontro pra pegar a polo preta? Saindo do trabalho 18:00, o encontro às 18:30... Considerando que levava em média 12 minutos no trajeto trabalho-casa, podia chegar em casa em torno das 18:14, vestir a camisa, sair de casa lá por 18:17 e, com apenas 13 minutos para chegar no restaurante a partir de casa, sua margem de antecedência ficaria quase zero. Ah, e ainda por cima tinha que levar em conta o trânsito. Não, não tinha jeito, era melhor esperar mesmo, chegar atrasado, sair um pouco mais tarde e ir direto do trabalho pro restaurante. Ô, saco! Resolveu ir fazendo as outras coisas: escovar os dentes, pôr o tênis, tudo tinha que ser jogo rápido para otimizar o tempo.


Não imaginava que naquele inferno que ia encontrar o amor da sua vida. Seu nome era Letícia, amiga de faculdade da Gisele, e quando ele passou por ela, sentada, segurando o cabelo da Heloísa com uma cara de cu (já que a Helô não parava de vomitar num balde vazio de cerveja), os olhos dos 2 se cruzaram justo no momento em que ele processava a cena, fazendo ele soltar uma risada alta e involuntária, que por sua vez disparou uma risada dela também, pela própria desgraça que encarava. Empatia instantânea. Fez um comentário (não lembrava qual) sobre a situação das 2 meninas, o que levou a uma resposta bem-humorada dela (também não lembrava qual), que levou a um papo vindo, um papo indo e, daqui a pouco, a Heloísa já tinha ficado de lado aos cuidados de alguma outra pessoa enquanto os 2 conversavam (devidamente sentados) do lado dela.


Daí vieram as perguntas. De onde ele conhecia a Gisele? O que ela achava do curso de Letras? Ele achava que a Gi tinha mudado muito desde o Ensino Médio? Ela não achava que ali tava meio abafado demais? Ele não queria ir conversar lá fora? Que seriados ela assistia? Sério que ele nunca tinha lido Tolkien? Ela tinha número de celular? Ele sabia que ficava muito bem naquela polo preta?... Ele não soube como reagir, nunca levara jeito com as meninas. Ela disse que adorara ficar conversando com ele ao relento vendo a balada se esvaziar, mas realmente precisava ir embora então que adicionasse ela no Face pra continuarem se falando.


Pulando em um pé só enquanto amarrava o cadarço do tênis direito, viu que faltava 1 minuto. 1 mísero minuto. Quase lá! Correu pro banheiro pra escovar o dente, não tinha muito tempo. Cogitava investir em uma moto porque o tempo de viagem iria reduzir significativamente. O único problema é que não sabia andar nem de bicicleta, quem dirá de moto. Mas tudo bem, ia dar tempo certinho de terminar de escov-


A musiquinha tocou dizendo que o ciclo tinha acabado, as roupas estavam finalmente livres! Acelerou a escovação, cuspiu, tomou água, bochechou, cuspiu de novo. A partir de agora, o atraso passava a ser culpa dele, e não da máquina. Correu pro quarto, pegou os óculos que ela tinha consertado pra ele no improviso daquela vez, abriu a máquina, vestiu a polo e saiu.


•••


A caneta dançava irrequieta em sua mão, com certeza nervosa por toda a responsabilidade que ela carregava: Letícia precisava de nota pra passar direto e então era dever da caneta escrever as respostas certas na prova. Afinal, a Letícia havia se matado de estudar para as provas dessa semana, deixado de ver o namorado a semana inteira para arranjar tempo para tal e de noite tinha um encontro com ele. Então vamos lá, caneta, a responsabilidade agora é sua! O encontro é para ser de celebração e não lamentação. Mas se não conseguisse a nota que precisava, tudo bem: apesar de você, prova, amanhã havia de ser outro dia.


Uma última olhada no celular antes de desligá-lo para a prova. Lá estava a mensagem dele, mandada de manhãzinha. Dizia boa sorte, boa prova e que mal via a hora de estarem juntos depois de tantos dias separados. Sentia saudade e queria apertá-la bem apertado, beijo e até depois, te amo. Respondeu, guardou o celular e prendeu o cabelo.


Enquanto o professor entregava as provas de Semântica, refazia as contas na cabeça para ver quanto precisava para passar sem pegar final. Seis-e-três na primeira prova, seis-e-sete na segunda, para atingir a média de sete precisaria de... Você precisa de um 8,0, dizia o Mateus na sua memória, de quando tinham feito o cálculo pelo telefone dois dias atrás. Se conseguisse, ótimo: passaria direto em Semântica e não teria que se preocupar com nenhuma final. Iria beber e comer bem no restaurante que ele dizia que tinha um tagliatelle à fiorentina maravilhoso, melhor massa que você vai comer na sua vida (embora o andar debaixo do restaurante seja meio claustrofóbico) e depois podiam planejar uma ida à praia na semana seguinte se ele também fosse bem nas provas e tirasse o 6,3 que ele precisava, mas que com certeza iria tirar porque aquele 4,0 que ele tirou na segunda prova era um mero deslize e o desempenho dele provavelmente deveria ser mais próximo do 8,6 que teve na primeira prova, ainda mais levando em consideração que a média do resto da turma na matéria era 5,6 e ele realmente se destacava, tanto que o professor até tinha oferecido pra ele a vaga de monitoria caso ele quises-


A prova pousou sobre sua carteira, iluminada pelo sol que vinha de lado dando a ela um quê de divino, transcendental. Vai, Letícia, tira essa nota e vai ser feliz, parecia dizer uma força superior. Era uma batalha contra as circunstâncias, pois o professor se mostrava durante as aulas estar mais interessado em falar sobre suas histórias com as ex-esposas ao invés de focar no tópico da aula. Para vencer tais empecilhos, ralou de estudar, leu de cabo a rabo os capítulos do livro que o próprio professor escrevera (e que era a literatura indicada na ementa da matéria, por mais suspeito que alguns achassem). O conteúdo se mostrou um tópico que no início lhe pareceu maçante, mas agora lhe trazia certo fascínio. Ainda mais depois que o Mateus começou a se empolgar quando viu o que ela estava aprendendo (sintaxe aplicada a inteligência artificial? que foda!) e ela começou até a achar interessante como funcionavam as linguagens de programação que ele mostrava. O que comumente a levava a indagar: por que Matemática e não algo com computação? Levava jeito para a coisa, claramente. Da última vez que havia feito a pergunta, ele hesitou: por mais que manjasse, era dos números que ele gostava mesmo; de vez em quando fazia uns bicos de TI na empresa do pai, mas a computação era mais um hobby para ele. Ela havia sugerido que ele talvez tentasse integrar as duas coisas no futuro e ele disse daquele jeitinho dele que ia pensar.


Formavam um casal peculiar: ele com seu jeitinho meio esquisito e deslocado, ela, mais calma e confiante; ele com seus números, identificando padrões em datas, placas de carro e documentos, ela inserindo letras de músicas nas suas frases. Lá vem a Letras e o Números, diziam.


No cabeçalho da prova, as primeiras perguntas: nome e data. Que dia era hoje mesmo? Treze? Sim, treze de dezembro. Jesus, era sexta-feira treze ainda por cima! Mas tudo bem, tudo bem, não era supersticiosa. Não muito, pelo menos...


Tentou desviar do possível mau presságio, pensando em alguma outra coisa sobre aquela data. Treze de dezembro... Não tinha uma música assim? Do Luiz Gonzaga? Quando o galo cantou, que o dia raiou, ela não havia imaginado que hoje era treze de dezembro, mas era finzinho de semestre, quase férias. Dali a algumas horas, às seis e meia, estaria jantando bem, feliz e livre, e essa prova ia ser meramente uma lembrança daquela semana.


•••


Como assim, a impressora do RH não tava imprimindo? O que tava aparecendo na tela? Não, moça, tinha que digitar a senha pra ver. Como assim, qual? Aquela de 6 dígitos depois que trocaram o sistema da impressora para ser por impressão em nuvem. Lembra? Não? A mesma do xerox, ora! Como você faz pra... OK então, já vou, tchau. Com o toner em uma mão e uma resma de papel na outra (porque provavelmente era um desses o culpado), Mateus partiu para resolver o problema. Esperou o elevador que estava 5 andares acima e aproveitou para ver que eram 16:49 (4+9=13, o dia de hoje!). Faltavam então só 71 minutos de trabalho e assim que desse seu horário iria embora correndo.


Tomara que não tivesse nenhum problema de última hora pra resolver, não podia se atrasar. Se conseguisse sair às 18:07, levando em conta os minutos de atraso que tinha para compensar, o tempo até chegar no carro, sair da garagem e entrar no trânsito, o trajeto do trabalho até o restaurante demoraria aproximadamente 17 minutos, considerando a hora do rush (de acordo com o aplicativo no celular, mas não confiava muito nele), o que faria com que tivesse uma margem de antecedência de 6 minutos de segurança para chegar a tempo. Não era a situação ideal (preferia se manter acima dos 10 minutos) mas não tinha como sair mais cedo porque tinha que bater o ponto na hora certa senão iriam descontar dele como haviam feito daquela vez com o Rodrigo, que teve que descer lá pelas 14:30 buscar um documento com a irmã na praça em frente ao prédio, bateu o ponto de saída e esqueceu de dar entrada de novo quando voltou e como era último dia do mês não conseguiu compensar as horas e elas foram descontadas. Quase meio dia de trabalho foi embora assim, por um errinho besta. Mas Mateus ia lembrar, tinha que lembrar, não ia deixar isso acontecer com ele.


Entrou no elevador depois de deixar todos os interessados entrarem e ver se não estava cheio demais. Passavam fazendo aquela tal de conversa trivial de pessoas normais que ele tanto abominava: “nossa, esse ano voou, né?”, “que Messi que nada, agora o CR7 vai deixar ele no chinelo, cara!”, “vai pra onde no ano novo?”. Logo, 5 pessoas dentro do elevador o encaravam enquanto Mateus fazia as medições mentais, vendo se era possível ficar a pelo menos 2 palmos de distância de todos ali dentro. Era? Era. Entrou, a porta fechou e o elevador desceu.

No fim, era toner o problema mesmo. Foi pegar o elevador para voltar, mas dessa vez ele estava cheio demais (7 pessoas, 2 delas mais cheinhas). Teria sido melhor se isso tivesse acontecido na ida ao invés da volta, porque agora tinha que subir 6 andares de escada. Letícia tinha tirado sarro dessa sua mania na primeira vez, mas com o tempo passou a ser mais compreensiva: só dava um suspiro de resignação e o logo iam os dois juntos pelas escadas, com preguiça mas sem julgamento.


Ele tinha tido algum progresso. Sempre teve problemas em conversar com as pessoas e por algum milagre com ela tinha sido diferente. Nem imaginava como tinha conseguido manter uma conversa com ela por tanto tempo naquele aniversário. Parecia natural, com ela tudo parecia natural: a 1ª vez que saíram juntos sem nenhum outro amigo para ver a nova sorveteria na Praça da Hungria; a vez em que a convenceu a ir no cinema ver o filme dos Muppets na estreia (eu sei que parece meio bobo mas tem um senso de humor genial, juro pra você); o 1º beijo quando a Letícia o acompanhou até em casa depois do dito filme; o pedido de namoro que ele fez pra ela umas 2 semanas depois que começaram a se ver (com a desculpa de que tinha que fazer isso antes que ela mudasse de ideia); a 1ª transa quando desistiram de assistir aquele filme tosco do Eddie Murphy na Sessão da Tarde; a forma como ele se sentia mais à vontade para falar com pessoas quando ela estava por perto...


Antes que se desse conta, era 17:54 e agora acompanhava com a mesma ansiedade esses minutos finais como tinha feito com o ciclo de secagem de manhã. Já havia traçado na cabeça todo o trajeto até o restaurante, na esquina da Visconde com a Sete, e não podia perder tempo. Sua margem de antecedência era estreita e não podia se atrasar, porque era 13 de dezembro e ele tinha um encontro marcado.


•••


Lugar pra dois, por favor. Pode ser no andar de cima? De preferência numa mesa de canto. Aquela ali? Pode ser sim, obrigada. Sentou-se à mesa e olhou no celular para ver se ele tinha mandado mensagem. Nada. Normal, ela que tinha chegado cedo mesmo (ainda era seis e vinte e dois) então ele deveria estar a caminho. Com o trânsito, talvez demorasse mais um pouco, mas tudo bem, agora não tinham mais pressa mesmo.


Era um restaurante italiano antigo, devia ser da década de oitenta e alguns garçons pareciam trabalhar ali desde a inauguração. Um senhorzinho veio tirar o pedido, mas avisou que estava esperando por alguém. Uma água com gás, por favor. Gelo e limão, sim. Passou a mão pelo cabelo solto enquanto olhava a rua pela janela. Agora a prova já tinha passado, por bem ou por mal. O professor tinha garantido que mandaria as notas por e-mail até domingo para os alunos abaixo da média pudessem se preparar para a final na semana seguinte. Por algum motivo, porém, tinha a sensação de que não precisaria fazer a final. Então aquele jantar seria de comemoração.


Sua água chegou e bebeu alguns goles enquanto ouvia as conversas ao redor. “Você vai ficar do lado da sua mãe nessa?”, conversava um casal; “esse é o melhor álbum da Beyoncé”, uma garota em outra mesa; “amiga, hoje é aniversário da Taylor!”, se empolgou outra um pouco mais longe; “já faz uma semana”, dizia um pai pro seu filho sobre a morte do Mandela. Olhou a hora no celular de novo. Seis e trinta e quatro. Logo ele deveria estar chegando.


•••


Passou na frente do restaurante às 18:26 (gastando 2 minutos a mais devido ao trânsito), mas o problema agora era estacionar o carro. Nenhuma vaga na rua, teria que parar em algum estacionamento. Na verdade, até podia parar na rua mesmo, ninguém iria querer roubar um Uno Mille caindo aos pedaços (que a mãe tinha ajudado a comprar), mas preferia não arriscar. Provavelmente gastaria uns 15 reais no mínimo com isso, mais os 47 reais do prato que gostava, uns 12 reais de bebidas, o que dava 74 reais... Meio apertado, mas ia ter que dar. Falando em apertos, precisava dar conta das atividades da faculdade no Portal do Aluno. O prazo das atividades se encerrava toda sexta, então ainda podia fazer isso amanhã. Toda semana tentava fazer as atividades ao longo da semana, mas o diabo da procrastinação o induzia a fazer sempre o mesmo: todo dia deixar para amanhã até chegar o dia em que amanhã já seria tarde demais, fazendo tudo numa leva só e ficando louco de stress (se fosse a Letícia, ia prender o cabelo daquele jeito dela), fazendo a promessa de não insistir no erro na semana seguinte. E daí, na semana seguinte, adivinha? O processo se repetia mais uma vez. Se seu curso fosse presencial, achava que seria diferente, mas, por outro lado, pensava que assim era melhor: era mais barato e não precisava lidar com gente, tirando pelas malditas atividades em grupo.


Sem outra chance, parou o Uno, desceu, correu até o restaurante, abriu a porta. Subiu os degraus da entrada e foi recebido por um garçom que parecia à beira da aposentadoria, que o cumprimentou com um sorriso e um meneio da cabeça. Seus olhos correram as mesas do andar de cima, e encontrou a mesa que procurava: uma mesa vazia encostada a uma parede. Tinha outras vazias (o movimento era fraco nas quartas), mas queria alguma que fosse em algum canto. Moço, pode ser aquela ali? Duas pessoas. Obrigado.


Ao se sentar olhou pro relógio de pulso, que marcava 18:32. Fechou os olhos e respirou fundo: apesar de todo o seu planejamento, havia se atrasado. Pediu uma Coca para retirar o amargor da garganta.


Sentado ali, passando a mão no cardápio sobre a mesa e eventualmente olhou para a cadeira vazia à sua frente, onde Letícia se sentaria, evitando o momento em que teria que encarar seu olhar de julgamento. Desculpa, me atrasei de novo. Mas não tinha ninguém ali pra dar esse olhar. Sabia que continuaria ali sozinho. Sabia que a mesa para dois permaneceria 50% vazia porque lembrava o que tinha acontecido da última vez em que a havia deixado esperando.


•••


Já eram sete e vinte, ele não vinha? Como assim, acordou agora? Mateus, já tava ali sentada há quase uma hora e você tá dizendo que ainda tá de pijama em casa? Tinha ficado acordado durante a madrugada para estudar para a prova e depois decidiu tirar um cochilo ao chegar em casa e acabou esquecendo do despertador, mas, tudo bem, jurava que chegava aí bem rápido, já estava se arrumando. Rápido quanto? Não, Mateus, não ia esperar mais trinta minutos para você chegar.


Não é a primeira nem a segunda nem a décima terceira vez que você se atrasa! Toda vez que tinham algum compromisso, ela sempre tinha que criar uma “margem de antecedência” para levar em conta o fato de que ele simplesmente não sabia ser pontual. Fingia que o horário era sempre dez, vinte, às vezes até trinta minutos antes do horário correto para daí, quem sabe com alguma sorte, chegarem na hora certa. E, sem exagero, era sempre assim!


Prendeu o cabelo, pagou a conta da sua água com gás e saiu. Lembrou que tinha um ponto de táxi ali na outra quadra. Tinha muita fome, mas quando chegasse em casa daria conta disso com uma omelete ou algo assim. Não queria ficar por ali mais tempo e arriscar encontrar um Mateus tardio depois de toda essa espera. Agora, ele era a última pessoa que ela queria ver.


Chegou ao único táxi no ponto. O senhor taxista parecia estar prestes a encerrar o serviço pela noite. Não podia fazer uma última corrida? Aonde? Até aquele predinho de esquina, de quatro andares, que ficava em frente à Praça das Nações. Um pouco contrariado, disse para ela entrar; sentou no banco do passageiro e partiram.


Sentou-se no banco da frente e puxou o cinto, mas ele resistiu. É, tá emperrado desse jeito mesmo, moça; ela que tivesse sentado atrás. Letícia não teria tanto medo de andar sem cinto se o motorista não parecesse apressado para se livrar logo dela.


As esquinas iam ficando para trás cada vez mais rápido. Aquele semáforo já tinha ficado vermelho quando o senhor passou, pode ir mais devagar? Fingiu não ouvir e respondeu com um resmungo. Sua reclamação parecia apenas servir para fazer o motorista andar ainda mais rápido. Furou um sinal. Acelerou para poder furar o próximo, mas quando ela reclamou de novo ele parou com tudo, quase fazendo ela dar de nariz no painel do carro. Você tá louco, moço? Outro resmungo. Assim que o semáforo ficou verde, arrancou o quanto antes para não perder tempo. Se tivesse demorado um pouco mais, talvez tivesse ouvido o som do motor dos carros que faziam racha na rua transversal e repensado. A Porsche passou reto, mas a BMW atingiu o táxi pela porta do passageiro. O motorista saiu ileso e a família tentou abafar o caso, mas foi acusado de homicídio com dolo eventual, quando se assume o risco de matar, conforme explicou o jornal, mas seus advogados até hoje recorrem no processo. O taxista, que sofreu só ferimentos leves, foi entrevistado ainda na entrada da ambulância sobre a tragédia e expressou pena de sua passageira. Tadinha, era uma menina tão bonita, parecia ter tanto futuro pela frente.


Ali, naquela sexta-feira, treze de dezembro de dois mil e treze, Mateus não chegou a tempo de seu encontro marcado. É desse treze de dezembro que ele se lembraria e sabia que não se esqueceria jamais.


Na quarta-feira, 13 de dezembro de 2017, enquanto comia um tagliatelle com lágrimas nos olhos, jurou: ano que vem não se atrasaria novamente.


Flávio Stresser

Posts recentes

Ver tudo

3 Comments


Carlos Machado
Carlos Machado
Feb 03, 2022

Que maravilha, Flávio!

Like

Sarah Kruse Abrahams Paulin
Sarah Kruse Abrahams Paulin
Dec 22, 2021

Caramba! Texto muito lindo e envolvente, com um desfecho de fazer chorar... Bittersweet and beautiful!

Like
Flávio Stresser Araújo
Flávio Stresser Araújo
Dec 23, 2021
Replying to

Muitíssimo obrigado, Sarah! Agradeço muito pelo feedback! Que bom que gostou!

Like

Formulário de inscrição

Obrigado(a)

  • Facebook
  • LinkedIn
  • Instagram

©2021 por Flávio Stresser. Orgulhosamente criado com Wix.com

bottom of page